31 maio 2010

A primeira caravana é inesquecível


A primeira vez a gente não esquece. Eu como corinthiano há muito tempo queria ir ver um jogo do Corinthians. Nessa narrativa vou tentar expressar tudo que vivi para ir ver um jogo, com a riqueza de detalhes que minha memória permite transmitir.
Estava em clima de fim de férias naquela época, um misto de decepção e entusiasmo. Decepção por sentir que não havia aproveitado o bastante. Entusiasmo por querer que comessase as aulas logo para rever amigos. Foi então quando olhei no meu Orkut a comunidade da Camisa 12 - ES. Eu havia entrado nela sem nenhum motivo, apenas para me fazer presente e ajudá-la a crescer, nada além disso. Nela tinha mais um tópico de caravana, dessa vez para o Maracanã. Eu como corinthiano fanático, com o perdão do pleonasmo, nunca tinha ido a um jogo do Corinthians. Passei perto quando o Vilavelhense quase passou para a segunda fase da Copa do Brasil em 2007. Por um gol aos 47 min do 2° tempo o Vila foi eliminado. Era o mais próximo que eu havia chegado. Enfim, aquele tópico não era a primeira caravana que nossa torcida fez. Houve outras oportunidades. Porém, por puro preconceito dos meus pais, nunca conseguira "colar numa caravana" como nós torcedores costumamos dizer. Discuti muitas vezes com minha mãe a respeito disso. Mas dessa vez eu estava disposto a realizar uma das maiores aventuras da minha vida, tão sem graça até ali.

Olhei o preço: 230 reais. Exitei. Conferi minhas finanças e, juro pelo Corinthians, haviam EXATOS 230 reais! Era muita coincidência. Decidi. No domingo anterior ao jogo, liguei para o então presidente da nossa torcida, Anderson Donadoni. Falei com ele se ainda havia vaga para a tal caravana. A ÚLTIMA VAGA. Estava tudo dando certo. Fui ao bar em Jardim da Penha, onde nos encontravamos. Meu primeiro contato com o número superior a três corinthianos em um jogo. Era Corinthians x Santos, jogamos com o time reserva e perdemos por 2x1. Esse gol de honra corinthiano era o que eu precisava. Já estavamos perdendo de 2x0 e , sinceramente, não tinhamos muita condição de empatar aquele jogo. Mas diga isso para um corinthiano, não é palpavel sequer de reflexão. Acreditava numa virada épica, mesmo num jogo sem nenhuma importância. Foi quando em um bate-rebate, Renato, 18 anos e no primeiro jogo como titular fez o gol. Extase em Jardim da Penha. Senti um arrepio que nunca havia sentido. Comemorar um gol com outros corinthianos, novidade para mim. Valeu a ida ao bar. Era só a confirmação que eu estava fazendo a coisa certa. Paguei a caravana depois do jogo. Lembro do Anderson, o presidente, conferindo nota por nota. Eram notas pequenas, como eu disse era as economias de um semestre inteiro de um adolescente que não ganhava mesada. Quantos recreios em Jejum para juntar tal quantia. Coisa de corinthiano maloqueiro.

Durante a semana, precisei inventar um álibi. Poucos eram os cumplices: Welber, Rodrigo e Grilo. Colegas de classe que eu conhecia há poucos meses, mas já depositava uma confiança de anos de amizade. Elaborei um plano de fuga. Para minha mãe, eu iria para uma chácara comemorar o aniversário de um amigo. Não lembro o nome inventado do amigo, mas tive o cuidado de não por em jogo a integridade de nenhum conhecido. Estava tudo combinado, sábado dia 7 de agosto de 2009 eu iria viajar depois da missa. A missa acabava às 20h e eu precisava chegar no bar às 22h. Apreensão. Terminada a missa, me despedi peguei um dinheiro extra com mamãe. Como eu disse só tinha o dinheiro da viagem. Fui para o ponto de ônibus. Para não ser pego em flagrante, me antecipei um ponto antes, um pouco mais longe de casa. Esperava o T. Larangeiras, 1 hora se passou e ele não chegava. Mais apreensão. Fui informado que durante a noite ele não passava por ali. Já eram 21h 30 min. Os outros torcedores esparariam por mim? Tentei pegar um táxi. Ofereci tudo o que eu tinha no momento: trinta e poucos reais. Ele não aceitou a corrida. Corri tudo que pude até a BR 262, deserta àquela hora. Passei por um lava-à-jato abandonado onde fumantes de crack faziam sua noite. Tranquei. Havia um ponto ali perto, mas fiquei com medo de ser assaltado. Corri um pouco mais até o próximo. Em cerca de 5 min percorre praticamente toda extensão de Campo Grande. Fui de uma ponta a outra do bairro. Sentei e em alguns minutos chegou o ônibus. 21h 40min.

Durante a viagem fiquei torcendo para que ninguém desce sinal, que o trânsito estivesse livre, que o motorista corresse o mais rápido possível. Minha mãe ligava. Você está na estrada? Não mãe to na casa do meu colega. Que barulho é esse? É a Tv. Você tá numa festa né Rafael? Ehr... pra falar verdade estou, mas tá tranquilo. Olha lá em... Consegui me desvencilhar de um problema. Mas ainda precisava chegar a tempo no bar, local de saída. O ônibus chegou. Saltara na Praia de Camburi. Corri cerca de 1 km até o bar. Na costela esquerda sentia pontadas. Parecia meu pulmão querendo se expandir a tal ponto de sair do corpo, só para eu poder correr mais. Naqueles poucos metros, pensei em "tudo que vivera até ali(...)". Virei a esquina. Vi uma Sprinter. Ufa, consegui. Cheguei no bar, me apresentei e comecei a me enturmar, metade da saga eu completara.

Conheci um americano, Ethan. Pela primeira vez praticava meu inglês aprendido durante dois anos e meio no FISK. Ele não fazia idéia do que era futebol para os brasileiros, muito menos para os corinthianos, mas tinha sangue de maloqueiro. Ele havia saído da Carolina do Norte para rever um amigo brasileiro que fizera um intercâmbio lá e aproveitou para ir a um jogo de futebol. Ficou sabendo da nossa caravana e, assim como eu, "colou com a 12". Conheci também Yuri e sua esposa que era gremista. Descobri que ele morava há alguns minutos da minha casa. Futuramente seria companheiro em outra caravana. A viagem começou.

Outro ponto importante da minha aventura, eramos uma Sprinter contra uns 5 ônibus lotados de flamenguistas saindo do ES. Talvez fosse normal essa situação para alguns ali, mas para mim era arrepiante. Raça e Jovem, só os sanguinários. Odiavam o Corinthians pela rivalidade das maiores torcidas do país e mais ainda a Camisa 12, por ter roubado o bandeirão deles num confronto em São Paulo. Estavamos na casa do inimigo e em menor número. À paisana, ou como dizemos no nosso meio: sem a farda, a cada vez que paravamos a angústia era grande. Garganta seca e respiração pesada. Eles entoavam gritos de ódio, a gente tentava se mostrar assustados não como torcedores do Corinthians, mas para representar turistas que fariam um passeio no Rio de Janeiro. Não era acovardamento, só um adiamento do confronto. Feito o lanche, entramos na van e partimos dali. Risos. Depois de um certo nervosismo, descontração. Durmi e só acordei chegando na cidade maravilhosa.

Estávamos na ponte Rio-Niterói. O líder do nosso grupo, Ricardo, mostrava para o Ethan os pontos turísticos do Rio de Janeiro. Paramos no Habib's depois da capital, na Dutra. Era o ponto de encontro com os companheiros de SP. Eram 8h da manhã, fizemos um lanche ali mesmo e passamos um rádio para os caras. Previsão de chegada: 14h. Puta que pariu. Esperar até eles chegar aqui? O caralho! - disse Ricardo. Fomos para Copacabana. Sentamos na beira da praia e ficamos discutindo histórias do Corinthians. O melhor time, o título mais importante, o ídolo... a hora do almoço se aproximava. Fomos para um parque do lado do Maracanã, disseram-me que era uma tal quinta da Boa Vista ou algum assim. Almoçamos num quiosque, comida ruim e cara. E nem era um quiosque muito requintado, era um casal que atendia e aparencia do estabelecimento me lembrava os quiosques dos terminais de ônibus capixabas. Passamos o rádio de volta para os paulistas. Esperariamos ali mesmo no estádio. Não. Tinham que entrar todos juntos segundo a polícia. Por sinal, a polícia carioca odeia os paulistas e principalmente os corinthianos de torcida organizada, dá até para entender. Voltamos então para o Habib's, acho que era em Nova Iguaçu. Ricardo estava muito nervoso, ele que até então brincava com todos, não aceitou uma brincadeira de um outro colega. Ficou um clima tenso dentro da van. Todos quietos até o habib's.

Quando chegamos estavam todos lá: Gaviões, Pavilhão, Estopim e Coringão Chopp. Só não estava a Camisa 12. Ricardo ficou ainda mais irritado. Pensamos em sair junto com a Gaviões que ofereceu carona, mas os ingressos estavam com os outros. Saíram todos e ficamos sozinhos, em território inimigo. Muitos cariocas passavam e hostilizavam o nosso grupo. " Seus filhoxs daxs Púta" - disse um deles. Era só um e a gente em uns 15. Pensei em tirar satisfações, mas Ricardo mesmo nervoso aconselhou a não fazer isso. Meia hora de espera e eles enfim chegam. Tatuados dos pés a cabeça demostrando amor ao Corinthians, vieram cumprimentar a gente. Por ser uma torcida pequena se comparada a Gaviões e por nós sermos a única sede fora de São Paulo, eramos como filhos para eles. Senti que realmente era uma família, sem metáforas, no sentido denotativo. Após eles fazerem um lanche no Habib's e saindo sem pagar, maloquero é maloquero, fomos todos para o estádio uns 7 ônibus mais a viatura da polícia que fazia a escolta. No caminho novamente entoei cantos do Corinthians que só via na Tv e no youtube, sabia todos de cor apesar da inexperiência. Chegamos com uns 20 min de atraso. Naquele amaça-amaça que só quem foi ao Maracanã sabe como é, fui entrando. Era como uma espécie de túnel um pouco escuro o acesso a arquibancada. Aos poucos a luz radiava sobre nós, como nos filmes entrei no estádio e fiquei alguns segundos perdido numa outra dimensão, apenas olhando para o estádio. O jogo já estava rolando e lembro perfeitamente da primeira cena Elias correndo como um louco pra cima de um jogador do Flamengo. Caralho, é o Elias - pensei. O primeiro tempo rapidamente acabou, 0x0.

No intervalo a torcida não parou. Cantamos todos as músicas que eu vira na Tv e algumas que nunca tinha ouvido. Levanta o bandeirão! Olhei aquele pedaço gigante de tecido alvi-negro vindo em minha direção rapidamente. Lá embaixo o som fica mais compacto, o que arrepia ainda mais. Começa o segundo tempo, o Corinthians estava mal, o time era misto de reservas com titulares, sem nenhum entrosamento e nenhum comprometimento tático. Adriano faz o gol do Flamengo, vi a torcida deles explodir. É bonito realmente, mas para mim foi mais um arrepio porém não bom de sentir. Foi como uma facada nas costas, senti uma imensão queimação dentro do meu corpo. Torci por um empate, mas realmente não era o nosso dia. O jogo acabou e precisamos esperar umas duas horas para sair a torcida do Flamengo. Voltamos todos meio cabisbaixos. A ida que tinha sido animada e descontraída, apesar do nervosismo, não parecia com a volta. Só havia silêncio e um pouco de desanimo. No outro dia era segunda-feira, muitos trabalhavam. Na van todos durmiam, tentando relaxar após tanta coisa que havia acontecido. Eu também estava cansado, iria para a escola no outro dia em dois períodos. Porém, naquela van silenciosa, depois de toda depressão pós derrota, refleti sobre o que estava sentindo. Era uma depressão pelo Corinthians, estava triste pela derrota, mas estava feliz porque me sentia corinthiano. Se for para sofrer que seja pelo Corinthians então, pensei.

Foi uma derrota, não foi perfeita a minha aventura. Mas foi a primeira. Jamais vou esquecer do dia que sai escondido de casa para ver o jogo do Corinthians quando tinha 17 anos. Parece uma coisa simples para muitos, mas diante das dificuldades que enfrentei, foi uma aventura e tanto. Aqui está esse relato, para que eu não perca esse acontecimento da memória. Um dia contarei para meus filhos e netos, num domingo após o almoço, essa história que vocês acabaram de ler, com a mesma riqueza de detalhes.