02 julho 2012

Conto padrão de pós-briga


Pegou as chaves do carro e saiu. Buscou na rua proteção contra as divergências que tinha em casa com sua mãe. As discussões haviam se tornado mais constantes após o filho ingressar na universidade. Ele ainda estava se acostumando com sua autonomia e era em casa que sempre procurava testar limites.

A discussão havia começado por um motivo tão banal que mal se lembravam qual era, mas sempre se resumia na luta da mãe por hierarquia. Ela o criara dando-lhe bastante liberdade, pedia opiniões sobre as aquisições da casa, colocava-o a par dos negócios da família e até o incentivava a assumir as rédeas das finanças. Ele até ameaçava assumir seu posto, mas se irritava facilmente e desistia antes de começar. A mãe o apoiava e sequer o pressionava por ainda não ter começado a trabalharas. Ela somente se irritava pelos caminhos errantes que o rapaz escolhera ao rejeitar sua religião.

Saiu do bairro que morava sem nem mesmo saber onde iria. Gostava da estrada como cenário para reflexões, talvez por influência do pai que o havia deixado aos sete anos para se tornar caminhoneiro. Parou em uma loja de conveniência e comprou um maço de cigarros. Não tinha o hábito de fumar, se interessava mais na impressão rebelde que um cigarro o deixava. Mal conseguia tragar e dirigir ao mesmo tempo. O rádio estava com a opção de músicas aleatórias acionada e a trilha não combinava com seu humor, mas ele nem ligou. Gostava mesmo era de dirigir e se deliciava em deslizar por entre os carros em alta velocidade. O carro era quase de sua idade e de um modelo que não teria muito valor para a maioria das pessoas. Talvez por isso se identificasse tanto com o veículo. De tanto o dirigir, até sentia que o carro havia se transformado em uma extensão de seu corpo. Era o único espaço em que conseguia privacidade. Gostava de como fazia se lembrar do pai e de como era inadequado para sua condição social.

O rapaz pertencia a uma classe média emergente, mas rejeitava e se sentia rejeitado por essa condição. Preferia sempre lugares e pessoas mais humildes, onde o papel social fosse o que menos importasse. Acabou deixando o carro o levar para um bar onde costumava se encontrar com alguns amigos, bem afastado do local em que morava. A rua do bar era pouco habitada durante à noite e bastante violenta também. Era o limite entre a área em que a polícia monitorava e de onde os traficantes se tornaram mais soberanos que o Estado. Ele não tinha medo do lugar, na verdade se sentia mais seguro. Pelo menos os preceitos de que fugia não o alcançariam ali.

Seus companheiros eram em sua maioria mais velhos e menos instruídos que o garoto, mas ainda assim o respeitavam. Lá eles começaram a assistir lutas na tv. O garoto não era o maior fã do esporte, mas se deixou perder por algumas horas concentrado naquelas disputas. Dentro daquele cenário ele parecia se transformar e assumir uma personalidade bem mais simples do que passava em casa. Mesmo possuindo conceitos diferentes dos amigos, conseguia se dar bem com eles a ponto de assumir para si, algumas de suas características, principalmente quanto ao modo de falar. Gostava de levar para casa e para a sala da aula muito do que aprendia ali. Considerava-se capaz de percorrer os dois mundos com facilidade.
Um de seus amigos o chamou para uma festa perto de onde morava. Achou engraçado como o lugar de que tanto fugia voltava para assombrá-lo. Esperou até o início da madrugada para decidir se iria. O amigo, afoito, olhava a todo tempo para o relógio a fim de ir logo para a festa. Ele pensava no que faria após a luta acabar, estava determinado a deixar a mãe preocupada com sua demora. Tinha até se precavido de esquecer o celular em casa, em cima da mesa da cozinha, onde a mãe acharia com facilidade. Pensou em recusar o convite e ir a um bar próximo dali em que artistas independentes tentavam impressionar um público adolescente cheirando a álcool. Achou que se sentiria desconfortável por não ter nenhum conhecido no local. Ainda que se considerasse interessante, era tímido demais para puxar conversas com desconhecidos. Além do mais, acreditou que o público não lhe agradaria tanto, apesar de gostar do estilo de música do ambiente.

Antes mesmo do fim, já perdera o interesse nas lutas e, entediado, bocejou. Olhou para o afoito amigo e decidiu confiar a ele o destino para qual iria. No carro chegaram a um assunto envolvendo mulheres. Ouvia as queixas do companheiro que se desapontara com uma mulher com quem tinha feito planos. O amigo, quase dez anos mais velho que ele, já começava a se preocupar em se casar e ter filhos. Talvez fugindo desse encargo que havia arranjado para si, procurava sair à noite em busca de prazeres passageiros. Sem ter o que dizer para consolar o companheiro ele se sentiu desconfortável e culpou-se por não poder ajuda-lo. Queria ter algo para lhe falar naquele momento, qualquer coisa, mas não conseguiu abrir a boca. Seu silêncio fazia transparecer a diferença de idade entre os dois. Se sentiu menos maduro por isso. O local, desconhecido por ambos, começava a se aproximar e o assunto acabou deixado de lado para que se discutisse qual caminho deveriam seguir. Eles pararam o carro próximo a uma boate. Com sono, o garoto mais novo preferiu não ir para a festa com o companheiro. No meio do caminho enquanto ouvia as queixas do colega na viagem, decidiu voltar para casa. O amigo lhe assentiu com a cabeça sorrindo e se despediu.
Em casa o cenário não transmitia a confusão que armara antes de sair. A mãe assistia tv na cozinha e nem lhe perguntou onde havia ido, mesmo com ele tendo se ausentado por umas 6 horas desde a discussão. Em tom afável perguntou-lhe se queria algo para comer e ele, igualmente dócil, disse que não. O relacionamento entre os dois era tão intenso quem nem precisaram trocar pedidos de desculpas. Era comum que após uma briga, os dois se afastassem por algumas horas e voltassem a se falar normalmente.

Com um beijo a mãe lhe deu boa noite e se juntou ao irmão mais novo para ir dormir. Sozinho, na madrugada, procurou por algo para beber na geladeira e sentou no sofá. Deixou-se distrair pela tv e decidiu que terminaria aquela discussão em uma outra oportunidade.

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