Pegou as chaves do carro e saiu. Buscou na rua proteção
contra as divergências que tinha em casa com sua mãe. As discussões haviam se
tornado mais constantes após o filho ingressar na universidade. Ele ainda
estava se acostumando com sua autonomia e era em casa que sempre procurava
testar limites.
A discussão havia começado por um motivo tão banal que mal
se lembravam qual era, mas sempre se resumia na luta da mãe por hierarquia. Ela
o criara dando-lhe bastante liberdade, pedia opiniões sobre as aquisições da
casa, colocava-o a par dos negócios da família e até o incentivava a assumir as
rédeas das finanças. Ele até ameaçava assumir seu posto, mas se irritava
facilmente e desistia antes de começar. A mãe o apoiava e sequer o pressionava
por ainda não ter começado a trabalharas. Ela somente se irritava pelos
caminhos errantes que o rapaz escolhera ao rejeitar sua religião.
Saiu do bairro que morava sem nem mesmo saber onde iria. Gostava
da estrada como cenário para reflexões, talvez por influência do pai que o
havia deixado aos sete anos para se tornar caminhoneiro. Parou em uma loja de
conveniência e comprou um maço de cigarros. Não tinha o hábito de fumar, se
interessava mais na impressão rebelde que um cigarro o deixava. Mal conseguia
tragar e dirigir ao mesmo tempo. O rádio estava com a opção de músicas
aleatórias acionada e a trilha não combinava com seu humor, mas ele nem ligou.
Gostava mesmo era de dirigir e se deliciava em deslizar por entre os carros em
alta velocidade. O carro era quase de sua idade e de um modelo que não teria
muito valor para a maioria das pessoas. Talvez por isso se identificasse tanto
com o veículo. De tanto o dirigir, até sentia que o carro havia se transformado
em uma extensão de seu corpo. Era o único espaço em que conseguia privacidade.
Gostava de como fazia se lembrar do pai e de como era inadequado para sua
condição social.
O rapaz pertencia a uma classe média emergente, mas
rejeitava e se sentia rejeitado por essa condição. Preferia sempre lugares e
pessoas mais humildes, onde o papel social fosse o que menos importasse. Acabou
deixando o carro o levar para um bar onde costumava se encontrar com alguns
amigos, bem afastado do local em que morava. A rua do bar era pouco habitada
durante à noite e bastante violenta também. Era o limite entre a área em que a
polícia monitorava e de onde os traficantes se tornaram mais soberanos que o Estado.
Ele não tinha medo do lugar, na verdade se sentia mais seguro. Pelo menos os
preceitos de que fugia não o alcançariam ali.
Seus companheiros eram em sua maioria mais velhos e menos
instruídos que o garoto, mas ainda assim o respeitavam. Lá eles começaram a
assistir lutas na tv. O garoto não era o maior fã do esporte, mas se deixou
perder por algumas horas concentrado naquelas disputas. Dentro daquele cenário
ele parecia se transformar e assumir uma personalidade bem mais simples do que
passava em casa. Mesmo possuindo conceitos diferentes dos amigos, conseguia se
dar bem com eles a ponto de assumir para si, algumas de suas características,
principalmente quanto ao modo de falar. Gostava de levar para casa e para a sala
da aula muito do que aprendia ali. Considerava-se capaz de percorrer os dois
mundos com facilidade.
Um de seus amigos o chamou para uma festa perto de onde
morava. Achou engraçado como o lugar de que tanto fugia voltava para
assombrá-lo. Esperou até o início da madrugada para decidir se iria. O amigo,
afoito, olhava a todo tempo para o relógio a fim de ir logo para a festa. Ele
pensava no que faria após a luta acabar, estava determinado a deixar a mãe
preocupada com sua demora. Tinha até se precavido de esquecer o celular em
casa, em cima da mesa da cozinha, onde a mãe acharia com facilidade. Pensou em
recusar o convite e ir a um bar próximo dali em que artistas independentes
tentavam impressionar um público adolescente cheirando a álcool. Achou que se
sentiria desconfortável por não ter nenhum conhecido no local. Ainda que se
considerasse interessante, era tímido demais para puxar conversas com
desconhecidos. Além do mais, acreditou que o público não lhe agradaria tanto,
apesar de gostar do estilo de música do ambiente.
Antes mesmo do fim, já perdera o interesse nas lutas e,
entediado, bocejou. Olhou para o afoito amigo e decidiu confiar a ele o destino
para qual iria. No carro chegaram a um assunto envolvendo mulheres. Ouvia as
queixas do companheiro que se desapontara com uma mulher com quem tinha feito
planos. O amigo, quase dez anos mais velho que ele, já começava a se preocupar
em se casar e ter filhos. Talvez fugindo desse encargo que havia arranjado para
si, procurava sair à noite em busca de prazeres passageiros. Sem ter o que
dizer para consolar o companheiro ele se sentiu desconfortável e culpou-se por
não poder ajuda-lo. Queria ter algo para lhe falar naquele momento, qualquer
coisa, mas não conseguiu abrir a boca. Seu silêncio fazia transparecer a
diferença de idade entre os dois. Se sentiu menos maduro por isso. O local,
desconhecido por ambos, começava a se aproximar e o assunto acabou deixado de
lado para que se discutisse qual caminho deveriam seguir. Eles pararam o carro
próximo a uma boate. Com sono, o garoto mais novo preferiu não ir para a festa
com o companheiro. No meio do caminho enquanto ouvia as queixas do colega na
viagem, decidiu voltar para casa. O amigo lhe assentiu com a cabeça sorrindo e
se despediu.
Em casa o cenário não transmitia a confusão que armara antes
de sair. A mãe assistia tv na cozinha e nem lhe perguntou onde havia ido, mesmo
com ele tendo se ausentado por umas 6 horas desde a discussão. Em tom afável perguntou-lhe
se queria algo para comer e ele, igualmente dócil, disse que não. O
relacionamento entre os dois era tão intenso quem nem precisaram trocar pedidos
de desculpas. Era comum que após uma briga, os dois se afastassem por algumas
horas e voltassem a se falar normalmente.
Com um beijo a mãe lhe deu boa noite e se juntou ao irmão
mais novo para ir dormir. Sozinho, na madrugada, procurou por algo para beber
na geladeira e sentou no sofá. Deixou-se distrair pela tv e decidiu que
terminaria aquela discussão em uma outra oportunidade.
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